Sabe aqueles filtros de barro que dão uma água pura, com leve gosto de terra e que é bom demais tomar? A água é deliciosa porque purificou-se. Dentro do filtro existe uma vela que retém os resíduos, que podem sujar e turvar o líquido. Assim se pode provar o real sabor da água.
Agora imagine que, depois de 12 meses, sua capacidade de filtrar suas emoções esteja exaurida. E que sua vela metafórica esteja suja, imunda mesmo, e precisando de uma troca. Durante todo o ano, você passou por cima dos seus sentimentos, encolheu-se no corpo diante das ameaças cotidianas, encharcou-se de emoções negativas de que nem mesmo tem consciência, engoliu raiva, maquinou respostas ferinas ou colocou inúmeras frustrações debaixo do tapete. Mas que agora, nas férias, tem uns poucos dias disponíveis para fazer um balanço geral e colocar a casa em ordem. O que será, então, que seu coração mais deseja e pede nesse momento? Faxina, limpeza geral, vassouras varrendo cantinhos obscuros, esfregões tirando sujeiras do chão. Tudo para jogar fora tristezas e mágoas e trazer mais consciência sobre nossas questões mais profundas. Só dessa maneira é possível revigorar-se e preparar o terreno para o que pode vir de novo e bom. Essa é a grande oportunidade que temos todos os anos para nos livrarmos do peso, esse enorme peso que arrastamos durante os últimos meses e que nos deixava exaustos. E o primeiro passo para se desfazer dessa bigorna emocional é reconhecer que ela existe.
Eu e a dona Benedita
Dia desses descobri que fui enganada. No auge do estresse de fim de ano, trabalhando o triplo do que normalmente faço, fico sabendo que alguém em quem confiava, meu contador, estava me roubando descaradamente. Chato, muito chato. Como não podia tomar medidas contra isso, porque ainda não tenho como provar seu deslize, minha mente simplesmente empacou nessa história. E esse tornou-se um tema recorrente e obsessivo em meus pensamentos pré-natalinos. Eram ondas de “bem que eu estava desconfiando” (que é o mantra típico dos traídos…) com flashes de cenas em que ele se mostrava solícito, simpático, enquanto eu caía em sua conversa. Ser um encanto de pessoa é uma das especialidades dos “171″, os estelionatários, isto é, dos que passam golpes enganando a boa-fé das pessoas na praça (171 é o número do artigo do Código Penal que configura o crime de estelionato). E eu estava inconformada em me tornar o pato da vez e receber o carimbo de trouxa.
O psicanalista Carl Gustav Jung afirmava que a mente, quando não consegue solucionar um problema, volta sempre a ele, como um disco quebrado. E que, quando ficamos andando pela em casa em círculos preocupados com uma situação, estamos apenas repetindo fisicamente o que acontece em nossa psique. Pois eu estava bem assim, completamente circular. E os infernos são circulares.
Nesse processo de avaliação interna, enxerguei meu descaso com certos aspectos materiais da vida, minha ingenuidade infantil (que é bem diferente da inocência, porque revela apenas imaturidade), meu desejo eterno que alguém cuide de mim sem que eu precise estar atenta e alerta. Enfim, procurei compreender até que ponto tinha colaborado com essa situação. Vi coisas bem difíceis de engolir, podem acreditar.
O engraçado é que, depois de estar um certo período nesse processo de mergulho interno que me enegrecia o espírito, inexplicavelmente me vi ser tomada por um furor “faxinesco” único. De repente, baixou em mim uma dona Benedita com lenço na cabeça e vassoura na mão. Fui atrás de cantos sujos da casa para limpá-los, desinfetei lugares que nunca imaginei com um rigor espartano (como o maleiro e os armários da garagem, por exemplo). Organizei roupas, joguei fora ou doei o que não mais servia, queimei papéis antigos. Passei água com óleo essencial de lavanda no chão, depois de esfregá-lo com o mais colorido coquetel de produtos de limpeza que já vi. Enquanto fazia isso, o coração abrandou-se. Lavava também minhas culpas, emoções destrutivas e temores.
Purificação
No processo alquímico, que o psicanalista suíço Carl Gustav Jung considerava uma grande metáfora dos processos psíquicos internos, a primeira fase de transformação é chamada de nigredo. Nela se trava contato com que é pesado, sombrio, sujo. É uma verdadeira descida aos infernos, e ela está associada ao chumbo, a Saturno, ao que é angustiante e difícil. A segunda fase é conhecida como albedo e está associada ao que é alvo, límpido, aquático e lunar. É a época da lavagem dessas águas escuras levantadas pela nigredo, um período de intensa purificação. Quando atravessavam essa fase, os alquimistas se referiam a si mesmos como “lavadeiras”. Para os analistas junguianos, esse é um período mais leve e prazeroso, em que o analisado é capaz de perdoar, dissolver mágoas, cicatrizar feridas.
Pois ali estava eu em plena albedo, rodopiando feliz pela sala com um paninho de limpeza. Já começava a pensar mais concretamente nas providências a tomar com relação ao tal contador, no que esse episódio mudaria minha vida para sempre e como poderia ultrapassar as prováveis consequências com a cabeça bem mais fria. Às vezes o peso voltava, porque se entra e sai da nigredo para a albedo muitas vezes até se ingressar totalmente na fase da purificação. Mas, se os alquimistas e Jung estivessem certos, alguma coisa nova poderia nascer dali. “A alquimia representa a projeção em laboratório de um drama ao mesmo tempo cósmico e psicológico”, dizia Jung. Pois minha casa tinha se transformado em um laboratório. Ao mesmo tempo que limpava pratos, tapetes e janelas, procurava me visualizar lavando as dores da minha alma. Repetia o mesmo processo que um alquimista fazia em seus tubos e retortas: dissolver, destilar, purificar.
Tempo de conversas
Todo esse processo de acúmulo de dor e sofrimento e posterior anseio de limpeza também acontece durante o fim e início do ano. Por 12 meses acumulamos questões não resolvidas, sentimentos não processados, frustações e insatisfações, pensamentos repetitivos (crenças) que levamos pela vida sem perceber. Ao enfrentá-los e elaborá-los melhor, abrimos a possibilidade de uma purificação, de uma leveza maior diante de um novo ciclo. “É preciso certo tempo de elaboração interna para isso, um diálogo interior em que pesamos e avaliamos a situação segundo nossas referências familiares, culturais ou espirituais”, diz a psicanalista lacaniana paulista Andrea Naccache. Ela aconselha que esse diálogo também se exteriorize, seja na conversa com um amigo ou familiar mais sábio, seja com um terapeuta, um instrutor espiritual ou mesmo com a sabedoria de um livro (eu adoro o I Ching, mas há quem encontre esse conhecimento na Bíblia, nos Salmos ou nos Evangelhos, por exemplo).
Esse tempo de balanço e conversas pode ser mais rápido ou mais longo, pode se repetir mais vezes ou não, conforme o caso. Pode até se transformar num tratamento a médio prazo. “Uma pessoa pode interromper uma análise porque acha que dá conta de resolver o problema sozinha. Mas quando volta, cinco ou dez anos depois, é impressionante ver como ela recomeça o tratamento exatamente com a questão que a incomodava na última sessão que fez”, afirma Andrea, que tem estudos a respeito. Isto é, algumas vezes é realmente preciso se estender posteriormente um pouco mais nesse mergulho interno por meio de um processo terapêutico mais longo. Mesmo assim, esse tempo de fim e início de ano serve para uma avaliação geral, inclusive para considerarmos se não é tempo de reconhecer que precisamos de uma terapia ou da ajuda de um grupo de apoio. É um período para identificar um pouco mais qual é o peso que nos incomoda, o que nos oprime o peito, ter mais claros nossos medos, culpas e ansiedades, mesmo que eles pareçam ser os mais absurdos. E esse tempo de introspecção, de balanço e de conversas precisa ser construído. Em outras palavras, é necessário sentir que esses instantes são muito preciosos na abertura do próximo ciclo, justamente a fim de que se abra espaço para eles nesse hiato pré-férias, ou mesmo durante elas.
Tomar medidas práticas com esse balanço também traz muito alívio, como se um enorme peso fosse retirado do coração. “Isso se chama dar consequências às nossas ações, na expressão do psicanalista Jorge Forbes. Isto é, não ficarmos só na reflexão, mas darmos um passo adiante e partirmos para o planejamento e a realização”. Com isso, surge um novo entusiasmo, uma força e um vigor que antes pareciam inexistentes. Andrea lembra o depoimento do estilista Jum Nakao ao livro Criatividade Brasileira (editora Manole), elaborado por ela, onde a analista lacaniana entrevista várias pessoas ligadas à área de criação. “Quando perguntamos ao Jum quais eram seus sonhos, ele disse que não tinha nenhum, pois todos eles já estavam em processo de execução.” É o melhor que poderia nos acontecer neste início de ano: ter várias ações para trazer transformar em realidade o que almejamos. Isto é, nossa listinha não seria mais de desejos, mas de ações concretas para realizá-los. Se possível com tempo previsto, um calendário, uma cronologia.
E essa simples medida tem uma razão de ser: somos muito velozes para pensar, mas muito lentos para agir. Andrea colheu uma frase emblemática no Twitter sobre isso. Ela é do artista gráfico japonês John Maeda, e diz: “Balancear a velocidade da sua mente com a inércia do seu corpo no mundo real é o que faz estar presente tão difícil e necessário”. Por isso, quando decidir fazer esse balanço, fique bem presente no corpo, com os pés no chão, inteiramente vivo. Se puder, coma bem (aí vale o suco de pepino e todo o arsenal de alimentos que as revistas especializadas trazem para se desintoxicar), exercícios de alongamento e grounding, banhos com sal grosso ou ervas (por que não?) e respirações de limpeza, como os paranyamas hindus. Qualquer coisa que faça com a mente, faça também com o corpo. Assim as ações ficam mais fáceis de realizar. Quando você fez suas decisões e planejou com a cabeça, ele não estava ausente.
O que diz um rabino
As tradições espirituais também falam de processo de purificação. Budistas e hinduístas apostam na meditação e em práticas que limpem os quatro corpos (físico, emocional, mental e espiritual). Os católicos têm um sacramento especial dedicado a isso: a confissão. E numa corrente mística do judaísmo, a Cabala, podemos encontrar também muitos ensinamentos interessantes.
Para os cabalistas, durante a vida acumulamos ao nosso redor cascas energéticas chamadas de klipoth. Elas nos impedem de receber plenamente a luz divina e nos estimulam a padrões repetitivos, angústias, pessimismo, comportamentos obsessivos e compulsivos. E o que se faz para dissolvê-las? Emprega-se a mente (que, segundo a Cabala, une as consciências do corpo físico, energético, emocional e espiritual) com a ajuda de um elemento surpreendente: a água. “Para nós, ela contém em si mesma a energia da compaixão. Ela não só limpa fisicamente como purifica, alivia e traz um bálsamo para a alma, pois é uma condutora de amor”, diz o rabino cabalista Joseph Saltoun, que visita regularmente o Brasil para dar cursos e palestras. “A água tem a potencialidade de dissolver o julgamento, a rigidez, o rigor, a acusação”, afirma. E o rabino faz questão de explicar a diferença entre o que é ser purificado e o que é ser limpo. “Um lugar pode estar inteiramente limpo, mas ser impuro, não sagrado. Quando a água é empregada com a intenção mental de tornar um local ou uma pessoa puros, ela não só limpa como também purifica. Limpar e purificar são duas coisas diferentes.”
De acordo com a tradição cabalista, o banho de mar dissolve os klipoth, assim como as cachoeiras e os rios transparentes. “Quando se quer consagrar algum tempo para o processo de purificação interna, é bom escolher lugares onde há água limpa em abundância, para tomar banhos com a intenção de se purificar”, diz ele. É preciso ingerir a água com a intenção de que ela purifique o corpo – até podemos imaginá-la em forma de luz e projetar esse pensamento num copo diante da nossa testa antes de bebê-la. “Mas, depois dessa desintoxicação física e energética, a pureza deve ser mantida com o pensamento e meditações”, acrescenta.
Pelo menos segundo essa tradição, minha ideia de associar a água à limpeza e purificação emocional parece que não estava tão errada.
Pureza perdida
Outra maneira de recuperar a inocência e a leveza é entrar em contato com a criança interior. O terapeuta paulista Marcos Adriano, por exemplo, inscreveu-se num curso de artesanato, pois lidar com tesoura, papel, tintas e criatividade era um de seus prazeres quando menino. “Entro num estado de pureza, numa total ausência de julgamentos, culpas, sofrimento. É uma delícia”, admite ele. “Enfrento trânsito, desmarco consultas, mas não perco. Ele me deixa leve, pronto e criativo para atender meus pacientes.” Jung, por exemplo, construía cidades com bloquinhos de madeira, uma das suas brincadeiras preferidas na infância, enquanto elaborava suas intrincadas teorias. Brincar e purificar, para ele e para Marcos Adriano, são atividades que andam juntas.
Em seu trabalho como terapeuta ou como coordenador do Curso em Milagres no Brasil, ele retrata bem o ser de coração puro que integrou sua sombra, seu lado difícil, e liberou energia para dedicá-la ao outro. “Purificar é um trabalho constante, porque nos leva à consciência. E consciência é luz espiritual, divina”, diz Marcos. “E esse estado se consegue ao trazer sua criança interior à tona, ao sentir de novo o belo, o bom e o verdadeiro. Nessa condição de abertura e de não julgamento é mais fácil acolher o outro”, conclui. Marcos aconselha marcar na agenda de 2013 esses momentos para estar consigo mesmo, torná-los uma rotina diária ou semanal. Porém, se você não conseguir realizar seu detox físico-emocional-espiritual no começo do ano, não se preocupe. Marque outra data para fazer isso na agenda com um círculo vermelho, para não se esquecer. Você só terá a ganhar com isso.
Texto da Revista Vida Simples